segunda-feira, 6 de setembro de 2010

aos 70


Aos 70
Morri aos 70 quando decidi parar com aquilo que mais gostava de fazer, hoje não fumo mais, não bebo mais, não uso mais nenhum tipo de droga, não sei muito bem como suportar isso, mas sei eu foi tudo por uma boa causa, meus filhos estão precisando de mim, na verdade mais meus netos e bisnetos, todos eles são doentes, sofrem de um mal do qual sempre fugi, um mal que me preocupa terrivelmente, que me angustia muito, eles sofrem e muito, mas não conseguem perceber, gemem de dor, as feridas são visíveis e corroem suas peles assim como suas almas.
Um dia quase peguei essa doença, eu era criança e andava brincando de boneca, deveria ter uns cinco anos, minha mãe dizia, “minha filha” e se orgulhava de mim, era a década de 1940 e todos estavam me preparando para a inocência e o casamento, eu não sabia porque mas sempre eu ouvia aquela palavrinha,”casamento”, um enjôo batia em mim e eram náuseas muito fortes, não sabia explicar como, mas ficava de cama e nem mesmo conseguia fazer a ligação com a tal palavra que até hoje me causa aquela horrível sensação, essa percepção só consegui com o tempo, então concordava com tudo que me diziam , estavam conseguindo me corromper, já tinham até um homem em vista pra mim, era um tanto mais velho, tinha uns vinte anos e esperaria até minha aprendizagem se completar e mais ou menos uando eu tivesse uns quinze anos, “tudo BM”, eu disse e continuava brincando de boneca com minhas amigas que também estavam sendo preparadas para o tal feito fatal, mas tinha uma, apenas uma que também sentia náuseas ao ouvir aquela palavra que não me atrevo a repetir, parecia até castigo, ela era uma ano mais velha e seus sintomas iam além dos meus, ela ficava com o corpo todo empolado toda vez que sua mãe dizia aquilo, mas nós éramos apenas crianças e concordávamos até nosso enxoval estava pronto, tínhamos os noivos, só faltava crescer e domesticar.
Meu pai...um calado, mas sempre me deixou ler livros que minha mãe proibia e nunca dizia aquela palavra ridícula, então eu e minha amiga decidimos tê-lo como aliado, pois o pai dela era como a mãe e queria apenas vê-la casada, tudo isso aconteceu quando eu já tinha 10 anos, meu casamento se aproximava e parecia que o objetivo principal de minha mãe seria alcançado, no entanto ela não percebia que apenas fingia ter ter aprendido a ser inocente, fingia muito bem que gostava de cozinhar e que gostava de fazer todas aquelas coisas que tinham me ensinado no processo de domesticação, mas na verdade eu e minha amiga detestávamos tudo, inclusive o fato de minha mãe forçar meu pai a participar como seu cúmplice da toda aquela palhaçada.
Mas...tudo um dia acabou...ainda quando eu tinha dez anos na festa de aniversário da minha amiga...minha mãe odiou o corte de cabelo que tínhamos feito, a mãe dela desmaiou principalmente quando perceberam que não estávamos de vestidos como duas bonequinhas como gostavam de nos chamar, parecíamos mais com dois meninos qe corriam de um lado pro outro sentindo o vento da liberdade, fomos trancafiadas numa escola interna onde conhecemos uma coisa chamada cachaça, as freiras tinham umas garrafas escondidas na cozinha embaixo da pia, então...descobrimos e ainda conhecemos mais meninas que compartilhavam de nossas idéias , mais três, ai sim ficou muito bom, descobrimos como sair e voltar do forró que tinha bem ao lado da escola, foi perfeito, aprendemos a fumar, uma das meninas já sabia e tinha uns “aviões” como se diz hoje que comprava o cigarro e outras coisitas mais pra nós.
Aprendi ali a ser louca, ai vi que a sobriedade é um porre, conheci um cara e dei meu primeiro beijo, escrevi uma carta pra minha mãe “querida mamãe”... ai esculachei disse que não queria mais casar, nem cozinhar nem nada daquelas coisas, cai na esbornia de vez, isso eu tinha quinze anos, aquela escola ou convento ou seja lá o que for foi o céu, um verdadeiro paraíso achado, fiz de tudo lá dentro até meu primeiro filho, as freiras queriam tirar ele de mim, mandei todo mundo se fuder, papo é esse, o filho é meu e quem fica com ele sou eu, fugi, me fudi, mas...to aqui num to?
Aqui fora sim a bagaça foi grande, conheci homens de verdade, ladrões, vagabundos, idiotas que não sabem respeitar uma mulher, me prostitui, voltei pra escola, uma pública de boa qualidade, mas vi que definitivamente aquilo não era pra mim, estudar me tira a liberdade, sempre os homens, o submundo era melhor e também tinha meus filhos, já tinha vinte e cinco anos e dois filhos, aqueles dois lá e ainda nenhuma filha, isso até me enfurecia, hem? Quem? O pai? Minha filha eu já não sabia mais nem do meu, achei melhor deixar eles pra lá junto com todo o meu passado, mas hoje sinto falta deles, dos dois, queria que minha mãe estivesse aqui pra servir de exemplo pra meus filhos de como não se comportar, enfim...
Quando fiz trinta anos dei uma imensa festa, muita bebida, eu tava querendo entrar pro movimento da moda, o hip, tinha largado a prosituição, me disseram que eu tava velha pra isso, concordei, enchi o saco daqueles otários, peguei meus panos de bunda, meus filhos, um com quinze e outro com dez, disse mais uma vez foda-se e fui ser empregada domestica numa casa de bacana, mas enfim, minha festa de trinta anos fez muito barulho, sexo, drogas e rock in roll, a entrada dos hips foi proibida não queriam minha presença no movimento porque eu era estranha e mito radical, virei revolucionária e joguei uma bomba no filho da puta do presidente, mas errei o alvo e matei o dono da loja que ficava lá perto, ai desisti dessa caretice também e revolucionei minha vida.
Mas, o problema todo são meus filhos, quando eu tinha uns trinta e cinco tive uma menina e minha frustração acabou ou quase, acho que tava me preocupando muito comigo e esqueci dos meus filhos, o mais velho entrou pra universidade e saiu de casa, andava com uma camisa de botão por dentro da calça, um óculos fundo de garrafa e sempre lendo, no começo era bonitinho, todo dinheiro que eu pegava investia neles, queria mesmo que conseguissem ter um futuro, ai pensei de novo na minha mãe , aquela situação querendo me prender e me transformar, talvez ela tivesse realmente conseguido e eu estava me transformando nela querendo prender meus filhos, então liberei geral, ai o mais velho assumiu o irmão, que sempre gostou mesmo de imitar tudo o que ele fazia e não gostava muito do que eu fazia, até mesmo a irmã ele queria levar, era como um pai para os dois, então tudo estava em paz, deixei pra lá, continuei trabalhando feito uma condenada e dando todo o dinheiro pra eles, disse pra mim que fudidos como eu eles não seriam, os dois começaram a trabalhar e eu continuava com minha filhinha que até ai não apresentava sinais da tal doença, era ainda muito bebê, mas com o tempo o irmão se apossou dela e ela também foi contagiada, horrível, minha menininha, que coisa, virou evangélica com a influencia da cunhada...terrivel isso me doi o estomago.mas naquele momento foi bom ele ter levado, assim podia trabalhar melhor e curtir de novo e melhor, mas ai não sei...me deu um aperto no peito, um choro que não parava, resolvi, isso é saudade, tava quase careta a um ano , quase viro freira parecia até que eu era vier de novo, o que é isso? Não pode.
Ai sai cantando numa bela noite de sábado, “boemia aqui me tens de regresso”, foi um show, encontrei os amigos todos, aquela cachacinha mineira que me dar água na boca só de pensar, larguei o emprego nesse dia e montei uma casa, meninas de excelente qualidade, freguesia certa, foi romântico e foi bom, curti muito, namorei muito, namorei não namoro, mas...meus filhos...
Na verdade, essa é uma doença que faz parte da minha família a gerações, mas graças a deus e nossa senhora, tenho muita fé nela, sabia? Eu não tenho essa desgraça, mas tans feri tudo para meus filhos, mesmo me preocupando de fazer um com cada pai, foi tudo muito bem planejado aqui dentro da minha cabeça, mas ai olha o que aconteceu, meu deus, isso é horrível, terrível, que sofrimento...não aguento mais, cadê minha garrafa, preciso me aliviar e só a mineirinha pra isso.
Pois bem, só agora depois de todo esse tempo vim me tocar dessa situação, perguntei pra minha filha quantos homens tinham passado em sua vida e deitado em sua cama, a resposta me deixou besta, um horror, ela tem trinta e cinco anos, teve um único homem, perguntei das festas, talvez ainda tivesse salvação...preciso de um gole...não gosta de festas... percebi enfim...minha filha ta doente e ai sai perguntado aos outros e vi que não ensinei...isso me deixar sem ar...nada pra eles...são todos ... como dizer?....ca...re...tas, tem que dizer em voz baixa, vai que isso te deixa doente também, me dar minha garrafa pra cá ta pensando o que...me acende um cigarro ai...esse pessoal me arranca o gosto pela vida, o que faço?

Leila Leite.
Em:01-09-2010

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